sábado, julho 04, 2009

Francesco da Milano – Hopkinson Smith



Uma de minhas formas de aprender um pouco sobre música é lendo encartes de CDs de música erudita. Em alguns casos eles se mostram bastante interessantes e úteis, especialmente quando se trata de um compositor pouco conhecido ou que compôs especificamente para um instrumento menos prestigiado. É o que acontece, por exemplo, com aqueles que fizeram música para alaúde, vihuela e, até mesmo, violão. Muitas vezes, seus nomes não são sequer citados em histórias da música, a despeito de o alaúde ter sido, em outros tempos, um dos instrumentos mais importantes e de, recentemente, o violão ter adquirido um certo prestígio como instrumento de concerto.

Com o passar do tempo, o alaúde deu lugar aos instrumentos de teclado, como o cravo e, posteriormente, seu filho mais potente, o piano. Quanto aos compositores, não é difícil encontrar relatos de grandes compositores de obras pianísticas. Mas, com o aumento da potência sonora de cada instrumento, bem como com o aumento das orquestras, muito da riqueza, da textura e das sutilezas dos instrumentos mais antigos foram perdidos. Mesmo aqueles que se conservaram desde épocas já bastante distantes – como é o caso dos lendários violinos Stradivarius – foram alterados, de modo que se adaptassem à forma de execução e à sonoridade exigida pelas épocas seguintes.

Francesco da Milano foi um compositor bastante proeminente em sua época, mas acabou soterrado pelas areias do tempo e quase esquecido. Nesse álbum, o famoso alaudista Hopkinson Smith dá vida às composições de Francesco, executando-as em seu alaúde renascentista com toda a sutileza que lhe é possível resgatar através desse antigo instrumento.

Disponho a seguir a tradução de um excerto do encarte:



'Eu ouvi Francesco da Milano, o maior dos alaudistas e um querido amigo meu, tocar sobre esse tema, em Roma, à frente do Papa Paulo III.'
Salinas (De Musica, Salamanca, 1557)

Os mais intrigantes aspectos da personalidade musical de Francesco da Milano nos permanecerá para sempre desconhecido. Ele era um alaudista/compositor cuja musicalidade era considerada divina. Quais eram as qualidades de sons que ele produzia em seu alaúde? Como ele tecia sua mágica? Através de que meios ele trazia seu contraponto para a vida? Como ele respirava vida, de modo tão seguro, dentro de algumas das mais complexas polifonias já escritas para o alaúde? Francesco era conhecido como 'il divino'. Divindade implica a proveniência de um outro mundo – alguma força ou inspiração que fala diretamente para a alma e a eleva à alturas incomuns na vida cotidiana. Em épocas mais recentes, uma dimensão espiritual foi associada com outros intérpretes como: concertos do pianista Artur Schnabel 'eram comunhões … e quando a audiência se dispersava, era com um sentimento de ter sido purificada'; e do jovem Glenn Gould, um crítico de concertos, certa vez, disse: 'somente um vocabulário teológico pode expressar essa manifestação espiritual única de uma esfera superior. Esta é, realmente, música religiosa, aqueles eram sons religiosos'. Talvez a figura de Mozart, que não era somente intérprete, mas também improvisador/compositor (como eram muitos dos grandes alaudistas do século XVI), tenha mais paralelos com Francesco: 'Outros podem alcançar o céu com seus trabalhos. Mas Mozart, ele vem, ele vem de lá'.

A performance de Francesco era encantadora para os seus ouvintes: 'ao tocar o alaúde, ele não era somente excelente, mas insuperável... não deve ter havido ninguém que pudesse se igualar a ele e será difícil encontrar alguém igual no futuro'; 'ninguém era igual a ele tocando o alaúde, quando a questão era o uso da doçura, com infinitas graças'; 'uma harmonia tão arrebatadora [trazia seus ouvintes a] um estado de êxtase de um tipo de delírio divino.'

Para aqueles que o ouviram, Francesco era um incrível comunicador, que transformava o seu público. Para nós, conhecendo-o apenas através de suas composições, ele é acima de tudo uma grande mente e um incrível organizador de primorosas ideias musicais. Suas composições se estendiam da reunião de livres divagações improvisadas (muito poucas) até obras primas altamente estruturadas e de perfeitas proporções. Em uma textura instrumental de duas, três e ocasionalmente quatro ou mais vozes, ele trazia à vida invenções contínuas, com uma clareza de textura que compreendia as possibilidades do alaúde de um modo ideal.
Francesco Canona ou Canova nasceu em Milão em 1497 e morreu em 1543. Foi o seu lugar de nascimento, em vez de seu nome de família, que foi usado quase exclusivamente quando se referiam a ele em sua vida profissional. Como um alaudista, ele era bem-vindo em cortes principescas através da Itália – existem relatos documentando performances em Veneza, Piacenza e Nápoles – mas seus principais empregadores eram de Roma. Ele foi o alaudista pessoal do Cardeal Ippolito de Medici e dos Papas Leão X (1513-1521), Clemente VII (1523-34), e Paulo II (1534-1549), em cuja companhia ele estava, quando o Papa foi para Nice em 1538 para encontrar François I de França e o imperador de Habsburgo, Carlos V.
As primeiras impressões das tablaturas de Francesco datam de 1536. Naquele ano, apareceram três publicações, duas das quais eram dedicadas somente a composições de Francesco. A terceira era uma antologia publicada por Casteliono em Milão, onde sua música pode ser encontrada lado a lado com danças anônimas e peças de seus contemporâneos. Mais publicações seguiram e continuaram a aparecer até muito tempo depois de sua morte. (Como com Josquin de Prés, sua reputação póstuma era tanta que composições atribuídas a ele simplesmente continuaram surgindo.)
As composições que sobreviveram são de dois gêneros: Fantasias e Ricercares – os nomes são usados alternadamente, o último sendo um tanto mais arcaico – e arranjos de trabalhos para vozes. Ambos esses tipos de peças são essencialmente contrapontísticas e podem exigir muito dos membros da plateia, obrigando-os a se tornarem, às vezes, 'ouvintes virtuoses' , quando eles penetram nas interações e nas sinuosidades das linhas musicais.

Um comentário:

Vinício dos Santos disse...

André, seu texto elucidou um mistério pra mim!

por muitos anos, eu encontrei "alaúde" como exemplo de acentuação nos hiatos -i- e -u- tonicos, mas eu nunca soube o que era um "alaúde" rs

agora eu sei : )